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A modalidade de proposta por escolha da GNR tem sido tudo menos consensual entre militares e dirigentes associativos. Há sargentos de baixa psicológica por não terem dinheiro para viver com condições nas cidades onde são colocados.

Os sargentos da Guarda Nacional Republicana (GNR) estão a ser colocados em unidades a centenas de quilómetros de casa – com alojamento precário e um ordenado que não cobre as despesas mais básicas, como a alimentação ou as deslocações – e muitos acabam por pedir baixa psicológica para regressarem para perto de casa. O panorama agravou-se com o intervalo de cinco anos entre os dois últimos cursos de formação desta classe, que deixou vagas por preencher e trava maior rotatividade. Mas o processo como são decididas as colocações e quem é deslocado para mais longe está a gerar crescente mal-estar nos quartéis.

“Os problemas estão mais do que identificados. A Guarda tem uma norma interna das colocações que indica que temos de ser movimentados de acordo com a nossa antiguidade e o mérito”, começa por clarificar Pedro (nome fictício), sargento na casa dos 40 anos, que prefere não revelar a identidade por medo de represálias. “Há um diploma que fala na proposta por escolha. Imaginemos que a GNR investe muito dinheiro na formação de um militar e acredita que ele realmente é indispensável ao bom funcionamento de uma unidade”, diz o militar. “O comandante do posto em que trabalha pode propor que fique por escolha e fundamentar esse pedido, que constitui uma exceção”, exemplifica. No entanto, Pedro está ciente de que, no caso dos sargentos, tal devia ocorrer “com um ou dois, e não com vários”. 

É o que tem estado a acontecer, afirma o militar. “Muitos deles nem formação têm e ultrapassam aqueles que têm melhores notas e trabalham há mais anos”, explica, clarificando que “os últimos classificados do curso ficam todos onde querem, e quem comanda postos, estando a lidar com o cidadão, fica sujeito a deslocações de quatro e cinco horas de casa”.

A 300 km de casa É o seu caso, pois encontra-se a quase 300 km da cidade de origem, e conhece casos de colegas que não se apresentaram sequer ao serviço por causa do que consideram ser uma injustiça. “Daqueles que foram colocados por escolha, arriscaria dizer que 80% estão em teletrabalho junto da família”, desabafa o sargento. O processo causa mal-estar entre os próprios colegas. “Por não haver critério nenhum, é o salve-se quem puder, porque os comandantes fazem propostas àqueles de quem gostam”.

E a solução tem sido incapacidade para trabalho. “Neste momento, na minha zona, dos 20 que não tiveram proposta em 55, uns 40% devem estar de baixa”, afirma o sargento, acrescentando que “alguns fazem o pedido de relocalização a título excecional para regressarem a casa assim que possível”.

Pedro não esconde que, quando realizam os Cursos de Formação de Sargentos (CFS), sabia que o cargo ao qual aspiram “carece de movimentação”. É ao processo que tece críticas. “Eu tinha 30 sargentos atrás de mim e pensei que ficaria perto de casa, mas não foi isso que aconteceu”, confessa, afirmando que a distância tem muito impacto na gestão da sua vida familiar, para além de que a sua companheira tem de trabalhar.

“Gasto 15 euros por dia em alimentação porque não tenho tempo para cozinhar”, remata o militar, que considera as condições laborais “incomportáveis” e sublinha que “os sargentos optam pela baixa porque não têm dinheiro para sobreviver noutras cidades”. 

Primeiros sargentos ganham 1300 euros brutos e os de segunda categoria menos 100 euros. Com poucos alojamentos da GNR, os militares queixam-se também das más condições, que levam muitas vezes a procurar casa própria. Ao fim do mês, a margem é pouca. E a falta de perspetiva acaba por pesar.  “Como é que vou criar expectativas para vir para mais próximo da minha cidade? Não temos nenhuma segurança”, desabafa Pedro, que considera que o “o problema são os padrinhos, pois as cunhas sempre existiram, existem e existirão”, e lamentando o “ambiente muito difícil, em que os sargentos se maltratam uns aos outros”.

“Não fazemos nada porque teríamos de gastar muito dinheiro em tribunal”, justifica, acrescentando que “isto é um autêntico cartel, quando devia ser uma instituição imparcial e isenta”. E remata: para a força de segurança em que trabalha, “os militares são apenas números”.

“Vivemos no seio de uma instituição muito penalizadora” A 1 de julho do ano passado, 150 militares da GNR iniciaram o curso de formação de sargentos da GNR, o que aconteceu pela primeira vez desde 2015. Em comunicado, a GNR referiu que se trata do 39.º Curso de Formação de Sargentos (CFS), sublinhando igualmente que o comando se encontra “bem ciente da função essencial desempenhada pelo sargento da GNR, ao nível do comando intermédio, detentor de conhecimento e de reconhecida competência e o elemento-chave entre as categorias de oficiais e de guardas”. À época, a força de segurança esclareceu também que cabe aos sargentos “o enquadramento dos guardas, o seu acompanhamento direto, a transmissão de valores e o garante da coesão, e a responsabilidade” pelo serviço nos postos.

Todavia, para César Nogueira, o intervalo de cinco anos entre a realização dos dois cursos representa um dos grandes problemas da classe de sargentos da GNR. Para o presidente da Associação dos Profissionais da Guarda da GNR (APG/GNR), “está a decorrer agora um curso, mas o último terminou em 2017”, o que “é grave porque, quando estes segundos-sargentos forem promovidos, não haverá ninguém que os substitua quando forem primeiros-sargentos e, não havendo cursos regulares, a situação persistirá”.

O último curso permitiu a admissão de 50 sargentos. É de salientar que a formação tem a duração de três semestres escolares, correspondendo o terceiro semestre a um período de estágio no dispositivo como furriéis. No final desse estágio, os militares que tiverem aproveitamento serão promovidos ao posto de segundo-sargento.

Para além disso, na perspetiva do cabo ao serviço do posto de Lever, em Vila Nova de Gaia, a questão da proposta por escolha é tudo menos correta. “É perguntado aos comandantes quais são os membros que escolhem para se manter nos postos sem critério algum. Se houvesse transparência, tudo bem, mas não há”, avança, expondo que “existem dois ou três critérios nos artigos do comando geral, como as habilitações ou as competências mas, por norma, os militares não são escolhidos por isto, mas sim pelo apadrinhamento, pelas amizades e pela submissão cega porque não questionam quem está acima”, sendo que “podem pensar que certas ordens não são legitimas, mas não questionam, ultrapassando aqueles que têm melhores notas e isto é uma tremenda injustiça. Não é sequer apelativo para quem quer progredir na carreira porque sabe que os engraxadores, como lhes chamamos na gíria militar, lhes passarão à frente, mesmo que sejam maus profissionais”.

“Para quem é segundo-sargento e tem um vencimento mais baixo, estar deslocado muito tempo é pior e, logicamente, não havendo dinheiro, podemos ter espírito de missão, mas pagamos impostos e temos família para sustentar. Estando longe, as despesas são a dobrar com o mesmo vencimento”, lembra.

Ainda que não conheça o número exato de profissionais que estão de baixa, César Nogueira confirma que, a partir da informação que lhe é transmitida, sabe que existem “muitas dificuldades financeiras e emocionais”, pois, “antes ocorriam concursos sucessivos e os militares nunca estavam tantos anos sem promoções porque iam rodando sempre aqueles que estavam afastados” e, “não havendo isso, não se vão aproximando da área de residência, não há movimentações”.

“A nossa forma de extravasar é falar com os meios de comunicação, exprimir a nossa revolta, porque vivemos no seio de uma instituição muito penalizadora. Estamos em pleno século XXI, a associação vai fazer 30 anos, mas ainda existem profissionais que têm medo de falar connosco. Nunca dizemos quem nos dá informações, nós é que damos a cara, mas existe sempre o medo, principalmente, pela parte de quem está na categoria de oficial ou de sargento”, esclarece.

“As classificações dependem muito da avaliação do comandante direto ou do comandante da unidade e temem não ter progressão na carreira. No fundo, estamos amordaçados porque existe algo híbrido, uma força de segurança que é militar”, diz.

GNR garante que normas são cumpridas e procuram equílibrio “A Guarda Nacional Republicana tem, nas suas fileiras, um total de 2252 militares da categoria de sargentos, encontrando-se a decorrer dois CFS cujos 200 formandos ingressarão nessa categoria profissional após a conclusão com aproveitamento dos mesmos”, explica o tenente-coronel João Fonseca, questionado sobre esta matéria que tem estado a gerar mal-estar nos quartéis.

O porta-voz da Guarda, que ingressou na Academia Militar em 1995, garante que “as colocações regem-se pelo disposto nas Normas de Colocação dos Militares da GNR e das Forças Armadas (NCMGNRFA), constituindo-se um ato de gestão de pessoal que visa distribuir os militares pelas Unidades, Subunidades e Órgãos da Guarda”.

O também mestre em Ciências Militares lembra que este processo “tem por referência os lugares orgânicos definidos, bem como os respetivos quadros, especialização, categoria, subcategoria e posto, processando-se por escolha, por oferecimento, por imposição e por motivos disciplinares, por esta ordem de prioridades”.

Deste modo, o militar, que já exerceu funções no âmbito da Missão Fiscal e Aduaneira ou na estrutura de comando da Guarda, explica que a modalidade de colocação por escolha se processa “independentemente de qualquer escala e da vontade dos militares”, referindo que ela “visa a satisfação das necessidades e/ou interesses do serviço tendo em conta as qualificações, as qualidades pessoais do militar e as exigências do cargo ou das funções a desempenhar”.

Por outro lado, “a modalidade de colocação por oferecimento tem por base um requerimento do militar, no qual, de forma expressa, se oferece para ser colocado em determinada Unidade, Subunidade ou Órgão da Guarda”, enquanto a modalidade de colocação por imposição se efetua “independentemente da vontade dos visados e processa-se, em regra, por escala, visando, entre outros, promover vagas de forma equilibrada como consequência de necessidades do serviço, satisfação de condições de promoção e por motivos cautelares”.

GNR “a navegar à vista sem estratégia por parte da tutela” Se esta é a posição formal da GNR, para os dirigentes associativos o problema residente no facto do que devia ser exceção, a imposição de um posto, ter passado a ser o comum. “A colocação por escolha era de caráter individual e extraordinário”, mas, “infelizmente, a regra passou a ser exceção”, afirma o primeiro-sargento Cláudio Silva de Almeida, comandante de posto no Montijo e também dirigente associativo da APG/GNR.

“A atual conjuntura, de escassez de recursos humanos, nomeadamente na categoria de sargentos, torna obsoleto o paradigma de gestão e de relação hierárquica identitária da instituição, até aqui considerado válido, sendo que a falta de efetivo resulta do facto de que, nos últimos quatro anos, não houve ingressos na categoria, pela inexistência de Curso de Formação de Sargentos”, considera igualmente José Lopes, Presidente da Direção da Associação Nacional dos Sargentos da Guarda (ANSG). “Por conseguinte, os militares e os sargentos, em particular, são as primeiras vítimas da não renovação do efetivo, impossibilitando as suas colocações nos locais mais próximos das suas famílias e residência, muitos deles separados há longos anos”, diz.

Reconhecendo que a ANSG vê mérito na colocação por escolha, “tendo em conta a satisfação e ou o interesse do serviço”, não deixa de realçar que “a excecionalidade não se pode converter em regra e o facto é que 46% dos sargentos são colocados por escolha, deixando para o restante universo as colocações por imposição, transformando este procedimento num dos expoentes máximos do livre arbítrio, capricho e discricionariedade levado a cabo pelo Comando da Guarda Nacional Republicana”. 

Assim, aproximadamente 54% dos sargentos “são sujeitos a percorrer o dispositivo de Norte a Sul e Ilhas durante longos anos, que conduz a reduzida rotatividade, ao degradar do clima psicológico e consequentemente das suas famílias, pelo afastamento por tempo indeterminado”.

Aludindo a situações como a do comandante de Moimenta da Beira que nos próximos cinco meses, para a GNR poupar 90 euros em suplementos, terá a seu cargo uma área cinco vezes maior que Lisboa, José Lopes recorda que “a somar à angustia do afastamento, estão também as fragilidades vividas no dispositivo – em especial Postos Territoriais, sem efetivo para cumprir os serviços mínimos para assegurar do patrulhamento diário” e a falta de sargentos a comandar os postos e a desempenhar a função de adjuntos “tornam vez menos aliciante e atrativa uma carreira enquanto sargento”.

“A ANSG tem denunciado a precaridade verificada aquando da colocação ao longo do dispositivo, pois em muitos locais não existem casas de função e, muitas das que existem, encontram-se ao abandono sem manutenção, tal como acontece nos postos territoriais onde chega a chover”, desabafa. “Com a falta de um suplemento de residência condigno torna-se incomportável o aluguer de habitação face ao acréscimo de despesas, sendo que, em alguns casos, os sargentos perdem os suplementos que recebiam até então”, veicula.

“Chegados a esta encruzilhada de definhamento institucional, este navegar à vista sem estratégia por parte da tutela, importa refletir na falta de reconhecimento do esforço daqueles vão dando o seu melhor, que se submetem a ser colocados longe dos seus ambientes familiares”, apela.

“O core business da Guarda foi deixado para trás” Rodrigo (nome fictício) está na GNR há mais de 20 anos e testemunha também que há profissionais “um ano e mais tempo de baixa a aguardar que a sua colocação seja revertida”, efetuando a sua apresentação na unidade. Todavia, nesse mesmo dia, “colocam baixa e o papel de transferência para a área de residência” e, enquanto esse pedido não é deferido, ficam na condição de convalescentes.

“Aquilo que nos caracterizava era que, para onde quer que fôssemos tínhamos sempre alojamento”, esclarece, adiantando que “nas últimas alterações ao estatuto, e de forma a diminuir esta incapacidade e também incompetência por parte do comando e da tutela, foi retirado do estatuto o direito ao alojamento”, o que leva a que “os militares tenham direito ao alojamento se este existir, senão, têm de se desenrascar”.

Apesar de desempenhar funções na sua cidade de eleição, o sargento afirma que “as pessoas ficam em alojamentos sem o mínimo de condições, muitas das vezes, em sítios que outrora foram arrecadações ou casernas”, avançando igualmente que “há quartéis sem uma cozinha ou um espaço digno para descansar”.

“A falta de condições leva a que as pessoas fiquem exaustas”, chegando estas à conclusão de que deixar de ganhar por volta de 200 euros – incluindo 95 em subsídio de alimentação –, passando de um ordenado de 1300 euros – no caso dos segundos-sargentos – para 1100 ou de 1400 para 1200 – no caso dos primeiros-sargentos – pode compensar. “Se estiverem deslocados, têm de pagar alojamento, alimentação, viagens e as despesas habituais. Estando de baixa, poupam”, declara.

E a situação acaba por minar a força de trabalho e tornar-se uma espiral. “Se eu estiver sempre indignado, imaginemos isto vai repercutir-se na avaliação anual, nas recompensas que não recebo por parte do comandante. Ora, quem tem mais recompensas é mais facilmente promovido”, diz, salientando que “teoricamente, existe um conjunto de promoções por escolha, ou seja, só quem tem melhor nota consegue atingi-las”. E, para atingi-las, “não se pode levantar ondas, satisfazendo os interesses do comando e, assim, conseguir granjear o acolhimento por parte deste”. “Isto está tão mau que se torna difícil elencar o que é mais importante”, partilha, asseverando que “o core business da Guarda, que devia ser a segurança das pessoas e o policiamento, foi deixado para trás”.